" Esta é uma história dentro de mil histórias. Passada num lugar incrível e tão especial. Um lugar que nos tocou como nenhum outro... a Sardenha"
Esta é uma história dentro de mil histórias. Passada num lugar incrível e tão especial! Um lugar que nos tocou como nenhum outro. Quase como se nos tivéssemos apaixonado por ele e nele nos sentíssemos em casa. Estou a falar da Sardenha, a ilha dos nossos sonhos!
A Sardenha é a segunda maior ilha do Mediterrâneo. É um paraíso de natureza. Uma explosão de cores. Um intensificar de sentimentos e emoções. São pessoas vibrantes e lugares impressionantes. É uma cultura que nos encanta, com um passado que ecoa através dos vestígios deixados pelas várias civilizações que por ali passaram. A Sardenha são praias de sonho, florestas pristinas, povoações coloridas e montanhas de fantasia.
A aventura que vou agora contar foi sem dúvida uma das mais incríveis das nossas vidas.
Era de manhã cedo quando deixámos o conforto dos nossos sacos-cama, no parque de campismo em Cala Gonone. Carregámos as nossas mochilas e subimos a bordo do nosso incansável Renault Clio. Ainda enternecidos pelo nascer do dia, subimos a estrada aos ziguezagues até ao túnel que nos faz atravessar o interior da montanha rumo a um mundo completamente diferente daquele que deixámos junto à costa.
Algures, perdida no interior do maior desfiladeiro da Europa, encontra-se a parede de rocha onde sonhámos fazer a maior escalada das nossas vidas. A via de escalada que escolhemos tem 475 metros de altura e chama-se “Lughe ‘e vida mia”, que traduzida do sardo significa luz da minha vida.
Gola su Gorropu foi o nome dado a este impressionante desfiladeiro. Encontra-se no maciço calcário do Supramonte entre os territórios de Orgosolo e Urzulei. ´É impossível falhá-la com o olhar, à medida que seguíamos pela estrada. A sua imponência era impressionante mesmo visto à distancia.
Mais abaixo, o rio Flumineddu serpenteia pelo enorme vale coberto de carvalhos. Nascido no coração do Supramonte, desce através do desfiladeiro até ao harmonioso vale. O verde da floresta só termina quando surgem as enormes paredes de rocha. Paredes essas que nos iam parecendo cada vez mais imponentes à medida que nos aproximávamos.
Eram dez da manhã quando deixámos o conforto do nosso Renault Clio no colo Genna Silana. De sorriso de orelha em orelha começámos a longa caminhada até à entrada do desfiladeiro!
Escolhemos a rota mais dramática mas também a mais rápida de entre as três possíveis!
"... Algures, perdida no interior do maior desfiladeiro da Europa, encontra-se a parede de rocha onde sonhámos fazer a maior escalada das nossas vidas."
"...lindos abrigos de pastores, construídos à mão com as grossas cascas dos antigos carvalhos. A natureza e o Homem em perfeita sintonia."
O trilho começa com uma descida gradual, não muito íngreme e de baixa dificuldade. Seguimos tranquilos à sombra de gigantes carvalhos e com um rebanho interminável de cabras que íamos ultrapassando de pouco a pouco. O trilho é fantástico e muito agradável, rodeado de uma floresta magnífica de carvalhos e azinheiras, com o terreno extremamente limpo, onde apenas se avistam seixos de calcário de todos os tamanhos tal como pequenas folhas secas caídas das árvores.
Imaginámos como a nossa serra d’Aire e Candeeiros teria sido em tempos. Muito antes de terem ardido centenas de hectares de floresta e de algumas áreas terem sido reflorestadas com eucaliptos. Imaginávamo-la assim, coberta de árvores autóctones e com cabras e ovelhas guiadas por pastores.
Ficámos super entusiasmados e animados ao passar por lindos abrigos de pastores, construídos à mão com as grossas cascas dos antigos carvalhos. A natureza e o Homem em perfeita sintonia.
Já fora do manto de árvores, vimos pela primeira vez as enormes paredes de rocha do lado esquerdo do desfiladeiro. Passámos uma cascalheira gigante, completamente absorvidos por aquele cenário idílico. Ao longe, o vale com a enorme floresta onde corre gentilmente o rio, as imponentes paredes do desfiladeiro e, mesmo por cima de nós, as paredes cinzentas e amarelas de Silana.
Fascinados, continuámos a descer o trilho, agora já bem mais técnico. Ziguezagueámos pela floresta e passámos mais algumas cascalheiras, até que nos aproximámos das paredes de rocha, íngremes e cravadas de grutas e sulcos de todos os tamanhos! Logo à nossa frente um pilar de calcário destacado de tudo o resto, só para nos deixar completamente boquiabertos!
Um paraíso de rocha com tanta parede com potencial para escalada!
Seguimos encostados às paredes, descendo grandes pedregulhos, só para depois se embrenharmos novamente na densa floresta, onde o trilho não parava de curvar encosta abaixo, até que finalmente conseguimos espreitar, através da vegetação, o leito do rio Flumineddu e a entrada para o desfiladeiro! Descemos empolgados até ao leito do rio, agora quase seco, onde se encontra a “porta” de entrada para Gola su Gorropu.
É difícil pôr em palavras o que senti quando olhei pela primeira vez a entrada de Gola su Gorropu. Imponência talvez seja a palavra que mais brevemente descreve este lugar único no mundo! Sem dúvida um dos mais marcantes nas nossas vidas! Estava completamente hipnotizada e por momentos nem uma palavra me saiu da boca!
O desfiladeiro inspira um profundo respeito a qualquer pessoa que se atreva a entrar nele! A maneira como se estende até ao coração da montanha é impressionante… ziguezagueando como uma cobra, com as suas enormes paredes, imponentes e assustadoras. Em alguns pontos a altura entre a base do leito e o topo das paredes de calcário atinge os 500 metros. É deveras incrível!
É impressionante imaginar como ao longo de milhões de anos as águas das chuvas que caiam no norte de Gernnagentu se reuniram criando a nascente do rio Flumineddu. O rio, ao cruzar furiosamente o Supramonte, foi erodindo e dissolvendo incansavelmente o seu calcário, para formar o desfiladeiro que vemos hoje! Desfiladeiro esse que continuará a se moldar com o sabor do tempo.
Os gigantes blocos redondos e super polidos pela erosão da água, são testemunhos vivos da fúria do rio em dias de tempestade. Arrastados através do leito da garganta, vão moldando e mudando a sua configuração, apesar de parecerem eternamente imóveis!
"... Imponência talvez seja a palavra que mais brevemente descreve este lugar único no mundo! "
"... O silêncio era arrebatador e tudo estava calmo, quieto como se nunca se tivesse passado nada todos estes séculos..."
O nosso objetivo estava escondido atrás das paredes de rocha! Empolgados, entrámos finalmente pelas portas do desfiladeiro, iniciando a primeira secção, mais fácil e com menor risco de queda de rochas. Já era um desafio encontrar as redondas marcas verdes, porém lá fomos subindo os gigantes blocos, uns atrás dos outros, com as nossas pesadas mochilas, repletas de material de escalada.
Quanto mais entrávamos pelas entranhas do desfiladeiro, mais impressionante este se tornava. E a única coisa que me fazia continuar sem dar um passo apenas de meia em meia hora, era a consciência de que a grande aventura ainda nem tinha começado.
As paredes verticais de ambos os lados, ora cinzentas ora acastanhadas, cravadas de grutas e fissuras, pareciam intermináveis, reduzindo-nos a um ponto aparentemente insignificante na paisagem. O silêncio era arrebatador e tudo estava calmo, quieto como se nunca se tivesse passado nada todos estes séculos. Sentimo-nos em paz, ao mesmo tempo que imersos em euforia!
Um lugar onde se pode viver o passado caminhando no presente. Um lugar para nos fundirmos na natureza mais selvagem. Um lugar para nos ensinar a respeitar e para nos inspirar!
As paredes pareciam apertar-nos cada vez mais à medida que caminhávamos pelo leito, até chegarmos ao ponto mais estreito de Gola su Gorropu. Podemos tentar imaginar, mas é preciso estar de pé naquele mesmo ponto para perceber a verdadeira escala daquele lugar! São apenas quatro metros a separar as duas imponentes paredes de calcário, que chegam quase a atingir os 500 metros de altura! É deveras impressionante e inigualável! Era espantoso ver apenas uma estreita faixa de céu azul quando olhávamos bem lá para cima. Tal como os sons, também a luz era absorvida pelo desfiladeiro. Logo adiante, podemos ver com os nossos próprios olhos a mítica via de escalada do Hotel Supramonte, um 8b de 400 metros numa face extraprumada da rocha, considerada uma das vias de escalada mais difíceis da Europa. Por baixo estavam imensas mariolas e foi aqui que começou a segunda secção do trilho.
Cada vez que fazíamos uma curva no leito seco do rio, a paisagem hostil e imponente deixava-nos uma vez mais de boca aberta, olhos arregalados e pele arrepiada! Parecíamos tal e qual duas criancinhas a deambular por ali. Irrequietas e efusivas, subindo e saltitando de rocha em rocha.
Tivemos de utilizar cordas fixas de modo a passar alguns segmentos mais complicados. Esta já seria a terceira e última secção. O percurso vermelho apresenta um maior grau de dificuldade e perigo face a queda de pedras. Este troço já nos obriga a passos de II e III grau de escalada. Isto de maneira a transpor os altamente polidos blocos de calcário, cada vez maiores e mais imponentes.
A paisagem envolvente continuava a nos impressionar, embora o verdadeiro desafio passa-se por conseguir ler o terreno de modo a transpor os ditos blocos! Se o trilho estava marcado com as tais pintas vermelhas era quase impossível detetá-las, daí que por uma ou outra vez tivéssemos que voltar atrás e tentar subir por outro lado. Depois de uma última curva, subimos um pouco pelo leito rochoso, tentando passar ao lado das grandes marmitas de gigante repletas de água, e finalmente chegámos à base da nossa via de escalada.
Estávamos na base da gigante aresta do triângulo de rocha, e era possível ver parte do troço por onde iríamos subir. Adiante, a continuação do leito rochoso, já mais largo, que continuava a embrenhar-se cada vez mais na montanha. E à frente, uma cascalheira gigante e super inclinada por onde provavelmente seria feito o nosso regresso!
Estávamos literalmente no meio do nada, a horas de qualquer ajuda e completamente embrenhados no interior do desfiladeiro do Supramonte! E não podíamos estar mais felizes! Sentíamos um nervosismo miudinho que faz parte destas andanças mas as ganas por aventura falavam mil vezes mais alto do que as vozes que alimentavam a real sensação de risco.
"Estávamos literalmente no meio do nada, a horas de qualquer ajuda e completamente embrenhados no interior do desfiladeiro do Supramonte..."
" ... os grandes blocos do leito do rio Flumineddu tornavam-se à minha vista pequenos seixos de um ribeiro..."
Lá estava escrito a amarelo suavemente na parede “Lughe ‘e vida mia”. Era agora o grande momento e nós estávamos mortinhos por colocar as mãos na rocha!
O primeiro largo foi o Jorge que fez à frente… super rápido, deu logo para perceber como o “resto” da escalada se iria processar! Até que chegou a minha vez de deixar a segurança do solo e me aventurar nas alturas de Gola su Gorrropu!
– Ahhhh que qualidade de rocha! Assim até dá gosto!
E que gozo dava subir por aquela parede acima… rocha limpa, abrasiva, branquinha e quase virgem! A escalada seguia super fluída, sem ter que pensar muito no próximo passo. Tudo se dava de uma forma tão natural e o meu corpo parecia dançar parede acima numa sintonia perfeita com a rocha. Uma simbiose plena entre as minhas mãos e pés com as presas da rocha.
À medida que rapidamente me afastava do solo, os grandes blocos do leito do rio Flumineddu tornavam-se à minha vista pequenos seixos de um ribeiro. Quando dei por mim, num ápice, já avistava o Jorge de sorriso aberto. Continuou a fazer-me segurança e poucos segundos depois já eu estava junto dele numa cómoda plataforma.
– Excelente! A este ritmo chegamos lá acima mais depressa do que imaginámos!
Seguiram-se mais 5 largos, todos eles abertos pelo Jorge. Cada largo perfazia sensivelmente cerca de 50 metros, fazendo desses 5 largos uns 250 metros de escalada. Senti-me imensamente orgulhosa dele! Apesar de ele se sentir confortável com aquele grau de dificuldade, o espaçamento entre as proteções já dava por si que pensar! O grau de compromisso era enorme, tal como o risco de uma queda! Bem… acho que a ideia era simplesmente não cair!
Via sempre os primeiros passos do meu parceiro e depois bastava sentir a corda passar por entre os meus dedos para imaginar o que se estaria a passar mais acima. Quando ultrapassava o risco que indicava o meio da corda (40m), era sinal de que o Jorge já deveria estar a chegar ao fim do largo. Depois da confirmação via rádio (levámos walkie-talkies), eu retirava o dispositivo de segurança e já com a outra ponta da corda atada ao meu arnês, seguia pela rocha acima, no seu encalço.
Com os pés-de-gato eu era como a super mulher. Imparável e invencível, respirando aquele ar puro antes de cada delicado passo dado! As biqueiras dos pés eram suavemente colocadas nas saliências da rocha e os meus dedos abraçavam gentilmente as goteiras, formadas pela queda contínua de gotas de chuva ao longo de tantas décadas. Sentia-me em plena sintonia com a rocha ao mesmo tempo que a paisagem se moldava continuamente à minha volta.
As paredes do lado oposto pareciam cada vez mais altas e os seus segredos iam se revelando à medida que subia mais alto. Que reino maravilhoso num dia perfeito de Verão, apenas com uns pequenos cúmulos para nos fazer alguma sombra.
É indescritível a imponência da rocha que se erguia nas minhas costas… As paredes inclinadas e às lascas faziam lembrar as páginas de um livro, desfolhadas era após era. Não há melhor maneira de viver este lugar do que a escalar, pensei… sentindo cada segmento de rocha a ecoar a sua história. Desde a base do leito até ao topo da mais alta parede de rocha.
A sensação?! Bem… é preciso estar lá para saber o quão especiais nos sentimos por vivermos aquele momento que é só nosso… de mais ninguém… um nada e um tudo… um sonho tão real… uma felicidade e cumplicidade enormes por podermos estar tão ligados à montanha.
Ali fizemos História, essa que é só nossa e que a montanha assim deixou. Essa que tanto dá como tira. Que nos torna mais fortes ou nos mostra as nossas mais recônditas fraquezas. E o que é a vida sem história? O mesmo que um futuro sem sonho… esse sonho que nos move, moveu e continua a mover… até este presente… até esta mesma rocha perdida algures no maior desfiladeiro da Europa.
Unidos apenas por uma corda e pela insaciável sede por aventura, pela paixão, pelo desconhecido, pela curiosidade de ir mais além, e pelo profundo amor à natureza.
"...Ali fizemos História, essa que é só nossa e que a montanha assim deixou. Essa que tanto dá como tira. Que nos torna mais fortes ou nos mostra as nossas mais recônditas fraquezas."
"...olhar para baixo e ver os pés sustentes apenas pela biqueira dos pés de gato e... de repente o vazio... centenas de metros até à base da montanha! "
Radiantes e cheios de energia, fomos fazendo largo após largo, encontrando-nos nos excelentes patamares que nos permitiam descontrair um pouco, descansar e dar uns golos da preciosa água que cuidadosamente íamos doseando.
Os próximos dois largos, foram meus para abrir! Sentia-me bem e confiante das minhas capacidades. Num impulso de coragem aventurei-me sozinha em terreno desconhecido. Foi sem dúvida um dos momentos mais incríveis que vivi na Sardenha.
Senti-me tão leve e feliz! Como se não existisse mais nada neste mundo. Era só eu e aquela bolha de rocha à minha volta. Estava a viver verdadeiramente no momento. Mais nada importava.
E apesar da intensidade do momento, senti-me calma. Nunca na minha vida tinha imaginado fazer um largo de multi-pitch a centenas de metros do chão, com espaçamentos entre expresses que chegavam aos oito metros. O que é certo é que nem isso me impediu de continuar! Confiei no meu corpo e nas minhas capacidades, tentando vencer o medo em cada passo dado.
Foi um momento único na minha vida… quando me lembro sinto um arrepio que me percorre o corpo, uma nostalgia que me põe de lágrimas no canto dos olhos e um orgulho imenso. Foi uma batalha que naquele momento era minha e apenas a mim me pertencia!
Parece quase impossível, quase irreal… o que fiz… o que fizemos, JUNTOS!
Se alguém visse de cima, pairando num helicóptero bem lá no alto, e olhasse para aquele ambiente tão hostil esculpido de montanhas… sem ninguém, sem um único som para além do vento a sussurrar pelas muralhas de rocha… iria ver dois pontos solitários no meio de uma parede gigante que nos parece engolir! Dois pontos insignificantes naquele quadro gigante… dois pontos que eramos nós… Doidos? Talvez um pouco. Mas também que é a vida sem um pouco de loucura, de criancice, de risco, de tentativas e até de erros! Viver é sonhar e sonhar é viver! Nós optamos por tornar o sonho realidade, o impossível possível, o inacreditável comum!
Somos nós! Esses dois pontinhos únicos no Universo!
E lá continuei dançando pela parede fora, calculando cada passo antes de o tomar… decisões, decisões… tal como em tudo na nossa vida!
O leito do rio corria por debaixo dos meus pés e muitos dos cumes já ficavam abaixo do meu nível! Parecia um labirinto cercado por castelos gigantes de calcário! E que gozo me dava estar agarrada à parede apenas pelas minhas próprias mãos… olhar para baixo e ver os pés sustentes apenas pela biqueira dos pés de gato e… de repente o vazio… centenas de metros até à base da montanha!
No segundo largo, com 50 metros, tive de passar uma zona perigosa com rocha instável e um espaçamento de proteções bem arejado, onde uma queda é simplesmente inimaginável. Estava a uns cinco metros de terminar, quando me deparei com um passo mais delicado, que com o peso exagerado de metros de corda que já levava e me puxavam para baixo, tomei a decisão de parar ali. Fiz segurança ao Jorge que terminou aquele passo e seguiu para o penúltimo largo!
Uma máquina de guerra o meu parceiro, que me faz sentir sempre confiante em situações que poucos se atrevem a viver. Esta é outra das coisas mais espetaculares nestas aventuras. Poder desfrutar do momento junto da pessoa que mais amo. Este é um risco partilhado, um sonho vivido em conjunto. Apesar da luta ser interior e de cada um de nós, existe cumplicidade entre nós e o ambiente que nos rodeia. Existe acima de tudo, confiança um no outro, o que aumenta ainda mais a nossa ligação! Podemos fazer o que mais gostamos juntos, podemos ser loucos juntos e decidir sermos namorados, amigos, companheiros ou parceiros em qualquer situação. É perfeito… não queria mais ninguém para estar ali ao meu lado a segurar literalmente a minha vida.
E é essa a magia de tudo isto… partilhar os momentos… partilhar a vida. Tal como disse às portas da morte, o aventureiro Cristopher McCandless, “Life is only real when shared“.
Seguiu-se o último largo… e para terminar lá fui eu à frente. Aquele largo foi mesmo para disfrutar do resto da escalada big wall. Que paisagem incrível, que sensação de liberdade! Sentia-me tão genuína, tão eu! E apesar do medo tentar tomar conta de mim em alguns momentos, a sensação de vitória depois de o enfrentar torna-se das coisas mais incríveis e recompensadoras da vida!
Estava tão alto naquele reino de calcário que parecia sobrevoar as montanhas. Os gigantes blocos de outrora pareciam agora miniaturas e o rio continuava a sua escavação do leito, incólume à nossa presença!
Finalmente a parede tornou-se inclinada e tão fácil que já nem via plaquetes! Presumi que já estaria a chegar ao topo pelo que desci até à ultima ancoragem e fiz segurança ao Jorge, que depois de chegar até mim, me acompanhou até ao topo!
– TOPOOOOOO!!! CONSEGUIMOS yehhhhhh !!!
475 metros em 5 horas!! Que sensação incrível de satisfação me percorreu o corpo ao mesmo tempo que os meus olhos cintilavam com a imensidão da paisagem!
A vista era soberba! Podíamos ver o planalto do lado direito com milhares de carvalhos e o rio que descia desde cima, entrando no labirinto do calcário e finalmente vê-lo branco a destoar do verde da vegetação após sair pelas portas da Gola su Gorropu. E ao fundo, a cadeia montanhosa onde segue a estrada que nos levou até ali e que esconde a costa azul do outro lado!
E ali estávamos nós… abraçados, perdidos no tempo, a fazer história dentro da nossa história. Sentimo-nos especiais, imparáveis, orgulhosos e mais do que tudo, felizes por termos chegado ao topo sem qualquer tipo de problema! Lutámos e vencemos!
Gritámos, rimos e esperneámos durante alguns momentos, vibrantes pelo que se tinha passado! Sentimo-nos vitoriosos! Estávamos radiantes por estar ali a ver aquilo e a sentir aquilo… juntos!!
" 475 metros em 5 horas!! Que sensação incrível de satisfação me percorreu o corpo ao mesmo tempo que os meus olhos cintilavam com a incrível paisagem..."
A aventura ainda estava longe de acabar e se não queríamos passar ali mesmo a noite, era bom desaparecer dali o quanto antes! Comemos alguma coisa para ganhar alguma energia e bebemos as últimas gotas de água, conscientes de que tínhamos uma garrafa de água à espera lá em baixo. Calçadas as sandálias, continuámos em frente, sem saber bem o caminho pela vertente abaixo.
Começámos a seguir as marcas que foram aparecendo até darmos ao estreito e comprido vale que desce até à base da aresta do triângulo. A descida começou suave e logo se tornou tão abrupta que só descer por ali já era por si só uma verdadeira aventura! Apesar de cada vez mais vertiginosa, descemos seguros dos nossos passos. Ás vezes até caíamos, e nós ríamos, deambulando aos ziguezagues pela cascalheira abaixo. Foi de loucos! Sentia que a qualquer momento poderia cair e rebolar até lá abaixo ou provocar um deslizamento que me engoliria revoltado.
A adrenalina percorria-nos as veias e mais nada interessava para além daquele momento. Sentia-me tão viva! Só queria aquilo… poderia viver sempre assim… a explorar aquele lugar dias sem conta!
E lá fomos deslizando cascalheira abaixo até chegarmos finalmente ao sítio onde tudo começou! O Jorge foi buscar as mochilas escondidas. Comemos, bebemos, arrumamos o material e deixámos apenas o capacete como segurança para a passagem pelo desfiladeiro.
Quinta parte… voltar a fazer a garganta de Gola su Gorropu! E desta vez, para apimentar mais a coisa, não bastava já estar a escurecer como começou a chover. Conscientes do perigo de passar os gigantes blocos polidos e agora molhados, desatámos em retirada! Uma corrida contra o tempo, apesar de tentarmos manter o cuidado para não nos magoarmos naquele sítio hostil, completamente sozinhos e a horas de qualquer tentativa de socorro.
Com a ajuda um do outro, lá passamos as secções mais difíceis e perigosas, escorregando uma e outra vez pelos blocos abaixo! Quando chegámos à secção mais estreita do desfiladeiro, respirámos um pouco de alívio, tirámos umas fotos, e bebemos água, filtrada pelo musgo que caia de uma escorrência. Que lugar mágico! Tão mágico como sombrio, agora àquela hora tardia!
Mais ninguém… apenas nós completamente sozinhos no coração da montanha. Como eu adoro esta liberdade pura que só a natureza me pode transmitir. Despedimo-nos daquele lugar apaixonante e místico, envolvido pela magia oferecida pelas paredes tão altas que nos pareciam fazer encolher cá em baixo. Juro que custou sair dali. Voltava a olhar para trás, uma e outra vez, tentando gravar a imagem daquele lugar para sempre na minha cabeça. Não queria sair, nem dizer adeus, mas a promessa de voltar deixou que tivesse coragem de abandonar o sítio a que chamei casa durante um dia inteiro de emoção.
Saí de mãos dadas com o Jorge, um pouco diferente do que quando ali entrei. Já não era exatamente a mesma… era um eu mais forte, com mais uma experiencia, mais uma emoção, mais uma história para reviver à noite na cama, a olhar pela janela, ou para contar às pessoas, inspirando-as.
Ainda bem que o Jorge se lembrava da fonte logo à entrada da Gola su Gorropu! O meu corpo teve as reservas de água tão em baixo que desde as dez da matina que não tinha feito xixi. Quem me conhece sabe que não sou propriamente a pessoa com a maior bexiga do mundo, portanto podem imaginar o quão desidratados estaríamos. E não era para menos. Foi dos dias mais duros e ao mesmo tempo um dos mais felizes da minha vida. Foram 12 horas seguidas de dura caminhada e de escalada em terreno exigente, carregados de material e com a água contada.
Bebemos aquela preciosa água que nem uns loucos e já estávamos prontos para o sexto e último troço da aventura. Fazer o trilho, agora a subir, de volta para o carro. As nossas pernas e o corpo já estavam desfeitos, mas a nossa alma vitoriosa fez-nos seguir com força, degrau a degrau, curva após curva. Subíamos alegres, parando por alguns segundos, encostados às rochas e cantarolando a nossa aventura trilho afora. Começou a escurecer cada vez mais mas nunca precisámos dos frontais! Deixámos que os nossos olhos se habituassem à claridade natural do final do dia.
Não é fácil explicar o prazer que sentia de estar a sofrer ao mesmo tempo. Tudo me doía mas eu só queria era continuar. A alma manda o corpo e esta estava em altas!
Chegámos ao carro já era noite estrelada… eram dez da noite!! Foram três horas só para regressar! CRAZY LOVERS! Mais uma vez um nome que nos assenta tão bem. Radiantes, festejamos! E como recompensa sentamo-nos finalmente nos confortáveis bancos do nosso Clio! Seguímos viagem pelas curvas da estrada, quase a dormir, quebrados do cansaço.
Lembro-me de me deitar e adormecer com a imagem daquelas montanhas. Ao lado do Jorge, senti-me tão feliz e orgulhosa depois de um dia que se fez história nas nossas vidas.
"... Juro que custou sair dali. Voltava a olhar para trás, uma e outra vez, tentando gravar a imagem daquele lugar para sempre na minha cabeça..."
lughe 'e vida mia
Gola su Gorropu, Sardegnatambém por lá
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