"A Rota Vicentina foi um sonho de criança, não porque já a conhecia, mas porque de certa forma sempre me imaginei a fazê-la!..."
O desejo e a paixão pela aventura é algo que reconheço em mim já desde bem pequenina. A minha mãe conta-me histórias como as de me encontrarem longe de casa ainda com poucos anitos… Sabe-se lá onde a cachopa ia! Tenho memórias de brincadeiras nas vinhas e pomares dos meus avós, onde fantasiava encontrar-me num lugar distante e selvagem, daqueles que via apenas em filmes, e recriava cenários e peripécias onde me teria de pôr à prova com a natureza. Podia passar dias inteiros assim… a explorar cantinhos onde simulava verdadeiras histórias de aventura.
A criança que brincava perto de casa foi crescendo, e com isso a ousadia de ir cada vez mais longe. Quando a bicicleta apareceu na minha vida, também o meu mundo se transformou. A serra de Aire e Candeeiros tornou-se palco de grandes aventuras e ano após ano fui percorrendo distâncias cada vez maiores, sempre com a curiosidade de descobrir o que fica para além dos montes.
A Rota Vicentina foi um sonho de criança, não porque já a conhecia, mas porque de certa forma sempre me imaginei a fazê-la! Foi uma ideia que surgiu naturalmente quando pensei em fazer sozinha uma grande rota de bicicleta. Esta veio a tornar-se uma das experiências mais intensas e ricas da minha vida. E tudo começou em Tróia…
Enquanto esperava ansiosamente o ferry comecei a sentir um fervilhar dentro de mim. Era como se o peso de toda aquela incrível viagem se reflectisse no meu corpo naquele momento, mesmo sem saber sequer o que me esperava do outro lado da margem. Estava com a força de dez homens e uma felicidade que enchia o oceano. Era a minha grande aventura, só minha e de quem se atravessa-se no meu caminho. Estava desejosa de me pôr à estrada rumo ao Sul! Eu e a minha bicicleta!
Quando o ferry atracou podia ler sobre a sua estrutura e em letras vermelhas “abre a felicidade”. Pensei de imediato que não podia ter aberto melhor presente. A aventura estava prestes a começar!
A viagem foi curta, mas mais que suficiente para começar a fazer amizades. Conheci dois casais, que por coincidência vivem na Lituânia, país onde uns meses mais tarde me encontraria a fazer uma missão NATO. De lá de cima fui vendo a bela península de Tróia aproximar-se cada vez mais e à medida que me afastava do porto de Setúbal podia ver os contornos das serras e falésias que se estendem até ao Cabo Espichel. De vez em quando mandava umas espreitadelas para o porão de carga e lá estava ela, a minha bicicleta, mais que pronta para começar uma longa e incrível viagem.
"...Estava com a força de dez homens e uma felicidade que enchia o oceano..."
"Do outro lado, lá no horizonte, a silhueta de uma serra que tão bem me é conhecida..."
Bicicleta do lado de fora, mochila às costas e capacete na carola, lá fui eu! Deixei o cais para trás, contornei as ruas da famosa península de Tróia e num instante já me encontrava a pedalar junto à margem do estuário do Sado. Ainda era cedo e no entanto já pedalava com uma cadência rápida. Sabia por alto o tempo que deveria demorar, mas como já me conheço de ginjeira, sei bem que nunca é só aquilo que imagino. Vou tropeçando em tantas coisas boas pelo caminho, que acabo sempre por me desviar acidentalmente do que tinha inicialmente traçado.
Nunca tinha estado em Tróia, no entanto aquela breve passagem deixou-me com ganas de voltar. Não para onde a península começa, cheia de luxuriosos resorts e invenções dos homens, mas sim para sul onde tudo volta a tomar uma aparência mais selvagem e natural. Onde vemos apenas o estuário de um lado e o mar do outro. As dunas preenchem o que fica no meio, com pinheiros e arbustos a forrar o solo arenoso. A extensa praia de águas calmas e areia branquinha faz jus à sua beleza. Por pouco não me deixei ir até lá, no entanto a vontade de pedalar falava mais alto.
Do outro lado, lá no horizonte, a silhueta de uma serra que tão bem me é conhecida. A selvagem serra da Arrábida! Agora vistas de longe, as suas enormes e incríveis falésias ganham outros contornos, que apesar de meio desvanecidos pela bruma da manhã, continuam a deslumbrar quem as tem vindo a conhecer tão apaixonadamente. Recordei as milhares de vezes que olhei, do lado de lá, a vasta costa arenosa que se estende até ao Cabo de Sines, aquela que eu iria agora percorrer.
A faixa de areia foi estreitando até que finalmente deixei o estuário do Sado e cheguei à Comporta. A partir dali sabia que teria de seguir a estrada nacional sempre rumo ao sul, até terminar em Santiago do Cacém. Este primeiro dia acabava por ser um elo de ligação entre o lugar onde vivo e o início do Caminho Histórico, daí ter sido feito praticamente apenas por estrada. Não o poderia comparar com qualquer um dos dias que se seguiriam.
A bicicleta rolava sem dificuldades apesar do peso que carregava. Sentia uma certa “moinha” nas costas onde a placa da mochila assentava na coluna, porém, sem dúvida que o principal adversário estava a ser o calor. Apesar de ser mês de Abril, as temperaturas para estes dias já se previam bem elevadas para a época, e com o Sol ainda mais forte por se encontrar mais perto da Terra nesta altura do ano, pedalar tornava-se num bom desafio.
Parei na aldeia de Melides e depois de umas voltinhas despreocupadas pelas ruelas decidi parar para me refrescar com uma bebida gelada à sombra do chapéu da esplanada. A vida corria devagar e sabia-me tão bem! Corria de maneira tão natural que até o mais simples acto de observar o mundo em redor se tornava tão especial. É o cão rafeiro que se regala na água da pequena piscina do centro do café… são os homens mais velhos, sentados à sombra de uma árvore já cansada, que conversam e se riem da zaragata… e o grupo de ciclistas que brindam ao lado das suas bicicletas carregadas de alforges amarelos. Por momentos olhamos uns nos outros e sorrimos. Um sorriso de quem sabe o que é vaguear pela estrada e que por ela se deixa vaguear. E a vida corre tão bem… sem pressas. Ao sabor do que acontece e de quem deixa acontecer.
"... E a vida corre tão bem... sem pressas. Ao sabor do que acontece e de quem deixa acontecer."
" Enquanto me aproximava do Castelo, eram as paredes antigas das casas que me saudavam, eram elas o testemunho da minha vitoriosa chegada..."
Já tinha passado a aldeia quando olho para as horas. É o costume… vejo que ainda é cedo e como tal resolvo olhar para o mapa. “Humm… que temos aqui perto?” Reserva Natural das Lagoas de Santo André e da Sancha. Então lá me deixei desviar. Segui em direção ao mar e quando encontrei as lagoas percorri-as junto à margem por caminhos que fui encontrando à medida que avançava. Eventualmente lá acabei por voltar de novo à estrada nacional.
Só quando vi as muralhas no topo de uma colina é que dei conta do quão perto me encontrava de Santiago do Cacém. A minha primeira subida à séria tinha chegado e só descansei quando entrei pelas muralhas do Castelo. Lembro perfeitamente das pedaladas fortes que dei ao subir pela calçada feita de calcário branco. O silêncio reinava e não via nem uma viva alma. Talvez fosse pelo calor que ainda se fazia sentir àquela hora da tardinha ou porque simplesmente as pessoas foram abandonando a zona antiga da cidade. Enquanto me aproximava do Castelo, eram as paredes antigas das casas que me saudavam, eram elas o testemunho da minha vitoriosa chegada.
O Castelo parecia apenas meu. Sem ninguém por perto, podia imaginar que o tinha conquistado com a minha valente bicicleta. Percorri as longas muralhas, observei a cidade lá do alto e debrucei-me sobre o horizonte que dava até ao mar, ali tão pertinho. Imaginei o que me esperava do lado de lá, ao longo de montes e vales que se iam perdendo para sul. Senti-me ansiosa e animada por me fazer à estrada de terra batida pois sabia que a verdadeira Rota Vicentina iria começar ali.
Acordei cedinho no quarto da minha amiga Silvana. Ainda que o tempo nos tenha mantido afastadas desde os tempos de faculdade, ela será sempre uma amiga muito especial. E apesar de estar fora do país naquela altura, acolheu-me através dos seus pais na sua belíssima casa tipicamente alentejana.
O sol espreitava através das persianas e eu apressei-me em vestir a fatiota da bicicleta e a descer até à cozinha. E lá estava, já de pé, a ama da casa, uma senhora com um coração doce e ternurento, que acompanha a família há largos anos. Fez-me companhia ao pequeno almoço e até me ajudou a preparar umas sandes com o delicioso frango que havia sobrado do jantar. É maravilhoso sermos tão bem recebidos e acarinhados por alguém que conhecemos em tão pouco tempo.
De coração cheio e a sentir-me grata pela amabilidade com que fui recebida pelos pais e ama da Silvana, voltei a subir a longa calçada até junto das muralhas do Castelo. Mais uma vez, ninguém… apenas eu, a bicicleta e as casas como testemunhas. E ali estava ela, a Igreja Matriz de Santiago do Cacém, o ponto de partida do Caminho Histórico.
Desci pela calçada até à rua das Romeirinhas e daí segui um trilho estreito, entre muros, até ao Parque Urbano do Rio da Figueira. Enamorada pelas árvores e pelos lindos espaços verdes, foi a chegar à linha de comboio que dei conta que me teria enganado no caminho, já que aparentava seguir na direção errada. Nem dei um suspiro… sabia que fazia parte da aventura e normalmente é junto das localidades que costuma ser mais complicado dar com as marcações. Dei meia volta e quando me cruzei com um rapaz a correr nem hesitei em perguntar pelo caminho certo.
Muito mais divertido que olhar para o mapa é mesmo questionarmos a direcção do caminho às gentes dos sítios por onde se passa. E se ele conhecia bem o lugar… fomos lado a lado… ele a correr e eu a pedalar devagarinho. Fomos conversando sobre curiosidades do mundo da aventura e da natureza, e quando dei por mim já estava mais que no caminho certo. Uma fotografia da praxe, umas palavras de boa sorte e lá fomos nós, cada um para o seu trilho.
Subi pela estrada de terra até ao topo do monte e quando me apercebi que seria a última vez que teria a oportunidade de olhar para as muralhas e para a cidade de Santiago do Cacém parei por breves momentos junto a um marco de madeira da Rota Vicentina.
" O sol espreitava através das persianas e eu apressei-me em vestir a fatiota da bicicleta e a descer até à cozinha..."
"Como o notável silvicultor português afirmou... nenhuma outra árvore dá tanto exigindo tão pouco."
Aqui começava o reino do sobreiro, a emblemática árvore que dá ao Alentejo o seu famoso encanto. Esta árvore singular seduz-nos à medida que passamos. Não sei se é pelo encanto dos tons verdes das folhas, se pela textura recortada da cortiça, se pela tamanha grandiosidade e graciosidade ou se é pelos incríveis ramos que se contorcem numa espécie de dança com o Sol. É uma personificação da própria natureza, rude e bela… forte mas frágil. Como o notável silvicultor português Vieira Natavidade afirmou… “nenhuma outra árvore dá tanto exigindo tão pouco”.
O tilintar dos pequenos sinos ao pescoço das cabrinhas despertou-me a atenção enquanto passava junto a uns muros de pedra já invadidos pela vegetação. Era uma casinha pequena de pasto com um curral e uma horta. O chão desse pequeno curral encontrava-se polvilhado de pequenas folhas, caídas do sobreiro que se debruçava sobre ele. E duas cabrinhas, quem sabe mãe e cria, empoleiradas sobre o tronco e de olhos postos na estranha figura que as olhava da estrada.
Depois de passar ao lado das ruínas do Convento de Nossa Senhora do Loreto, o caminho outrora composto por terra escura e húmida, coberto de folhas secas e invadido pela vegetação, começou a dar lugar a algo um pouco diferente. Tornava-se então mais arenoso e um pouco mais seco, ainda assim, os sobreiros continuavam a amontoar-se nas suas margens. Apesar da areia ainda se encontrar um pouco molhada pelas chuvas da semana anterior, as rodas rolavam bem, não fosse o ânimo de quem ali seguia. Pequenos sobe e desce tornavam a minha viagem agradável e sem grande dificuldade. Era fácil rolar por ali entretida pela paisagem.
Mais à frente aparece um lindíssimo vale. Não pude deixar de parar! Tinha de contemplar aquele lugar tão rico em vegetação autóctone. Mil e um tons de verde e castanho por todo o lado. Um sítio mágico! Os braços dos enormes sobreiros pareciam abraçar-se por cima do caminho de pedra. Tal como na vida dos homens, o amor era como os ramos das árvores, a cruzarem-se uns nos outros apesar das dificuldades da vida, simbolizadas pela estradinha que as tentava separar.
Depois de voltar a subir e de passar por campos abertos onde a presença humana se fazia notar, cheguei à pequeníssima aldeia de Vale Seco, onde tal como descrito no guia que levava, se encontrava apenas um cafézinho com uma mini mercearia. Adoro estes pequenos e subtis lugares!
Estava um calor impressionante! Tirei o capacete e deixei o suor escorrer-me pela cara. Entrei no café cheia de convicção e pedi uma bebida fresca. Sentados num canto, um casal de caminhantes com um ar tão amigável interpela-me pelo que faço ali. Quando soube que eram italianos a conversa deu pano para mangas. Já nem me lembro do frescor da minha coca-cola, só lembro da felicidade do ânimo que sentia à medida que íamos conversando sobre as aventuras longe de casa.
"Tal como na vida dos homens, o amor era como os ramos das árvores, a cruzarem-se uns nos outros apesar das dificuldades da vida..."
"Nunca mais esqueço do brilho que carreguei nos olhos quando o homem disse que me tirava o chapéu por tal proeza..."
Este foi sem dúvida o troço mais árido de toda a Rota Vicentina, marcado por um Alentejo agrícola e notoriamente rural. A forte presença de um clima mais mediterrânico, com a chuva a concentrar-se em poucos meses do ano, a gestão pouco cuidada das árvores e o ataque de fungos e outras pragas aos sobreiros, contribuem para o declínio do montando. Todos estes aspectos, positivos e negativos, vão sendo absorvidos à medida que seguimos caminho. É impossível ser indiferente quando estamos tanto tempo ligados a esta terra.
Sem dúvida, um Alentejo amplo e a perder de vista, numa vastidão onde o silêncio era a força maior. A bicicleta seguia sem grandes obstáculos. Ágil por entre centenas de montes e vales!
Um furo, dois furos. Daqueles que todos os remendos juntos não poderiam salvar. Pois bem, eram exactamente duas câmaras de ar que trazia comigo. O céu já dava ares de se estar a fazer tarde e eu sabia que ainda faltavam uns bons quilómetros pela frente. Aceitei o destino, remendei o que consegui e nas calmas lá consegui pôr tudo no lugar. E… senti-me bem! Senti-me muito bem! Estava tranquila e feliz, confiante e livre. Dei ar aos pneus e segui com velocidade! E sentia-me forte, ainda que depois de um dia inteiro a pedalar com tanto calor. Agora, a aragem fresca do final do dia dava-me o estímulo de que precisava para continuar animada até ao fim.
A paisagem árida ficou para trás, dando lugar a algo mais vibrante. O verde voltava, assim como as zonas húmidas. Comecei a ver os braços da albufeira de Campilhas e pouco depois já estava a cruzar a grande barragem ao longo do asfalto.
À medida que caminhava para sul, numa paisagem coberta de estevas e sobreiros, podia ir espreitando a lindíssima barragem que ficara para trás. Pouco depois de passar a ponte sobre a Ribeira de Refróias comecei a subir, até que finalmente consegui ver o pouco que me faltava para chegar ao destino, a vila do Cercal. Momentos mais tarde já eu estava sentada numa esplanada do centro da vila, radiante e esfomeada, com uma coca-cola e uma tarte de amêndoa em cima da mesa.
" ...Um furo, dois furos. Daqueles que todos os remendos juntos não poderiam salvar..."
rota vicentina
Alentejo, Portugaltambém em rota vicentina
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