" ... Nada tinha mudado durante esse tempo, o vale permanecia incólume a sua passagem."
Há alguma coisa de diferente na Sardenha, que nos atrai de uma forma intensa e profunda. Um lugar que nos impele a voltar como mais nenhum outro. Esta história que estou prestes a contar diz isso mesmo, seja pelas imagens ou através das palavras, ela é o retrato perfeito do porquê de voltarmos.
Dois anos atrás e encontrávamo-nos precisamente no mesmo lugar, algures no interior do Vale di Lanaitto. Um vale muito singular em toda a Sardenha. Situado às portas de entrada do Supramonte e guardado por escarpadas colinas de calcário de ambos os lados. No seu seio, um exuberante bosque feito de azinheiras, terebintos, bordos, oliveiras, zimbros e carvalhos centenários.
Nada tinha mudado durante esse tempo, o vale permanecia incólume a sua passagem. Quase podia imaginar que tinha voltado atrás no tempo, de volta ao dia que tentámos encontrar os vestígios de um dos mais incríveis povoamentos da civilização nurágica.
Sentia-me uma verdadeira exploradora. A única diferença é que a descoberta seria apenas nossa.
Desta vez tínhamos reservado o dia inteiro para esta descoberta, mesmo antes de seguirmos para a grande aventura que nos tinha trazido à Sardenha, o Selvaggio Blu. Não íamos correr o risco de voltarmos a não conseguir encontrar essa misteriosa civilização por falta do nosso precioso tempo.
Desta vez levámos o Clio até mais longe. Apelámos ao seu espírito aventureiro e subimos ao longo de uma estrada de pedra onde poucos se deviam aventurar fora de um jipe. Onde já não era possível continuar, deixámos o carro, metemos as mochilas às costas e começámos a caminhar ao longo de um trilho. Desta vez tínhamos lido alguma informação sobre o trekking, pelo que sabíamos que teríamos de voltar a passar por parte do trilho que fizemos da última vez.
Já teríamos poupado possivelmente entre 20 a 30 minutos ao termos feito o estradão de carro. Agora, um pouco acima do vale, subíamos gradualmente por um trilho ao longo da encosta rochosa. Os trilhos na Sardenha primam sempre pela forma natural como se encaixam com a paisagem envolvente, talvez também pelo que lhes deu origem ter uma conotação de sustentabilidade entre o homem e a natureza. É que este, tal como a grande parte dos trilhos nesta região, são testemunhos da vida dos pastores. Existiam não para nos deleitar, meros espetadores. Faziam parte de uma rede viva de intercâmbio de bens, de ligação entre aldeias e claro de atividades de pastorícia.
Gosto de pensar que as rochas por onde as minhas botas passam hoje, fazem parte de uma teia que tem tantas histórias, tantas vozes e caras… Tal como o vento ou a água das chuvas, também essa história tem deixado marcas nos elementos que compõem aquele caminho.
" Gosto de pensar que as rochas por onde as minhas botas passam hoje, fazem parte de uma teia que tem tantas histórias, tantas vozes e caras..."
" ... Cumes estritamente feitos de rocha cinzenta contrastam com um incrível céu azul."
Quando a vegetação assim nos permite, abre-se uma janela para a encosta do lado de lá. Como o vale estreita muito antes de ser apenas um escuro desfiladeiro, a pequena distância permite-nos captar de relance os seus curiosos detalhes. Cumes estritamente feitos de rocha cinzenta contrastam com um incrível céu azul. A encosta encontra-se quase toda forrada com vegetação mediterrânica, no entanto, o que nos capta a atenção são as gargantas esculpidas no seu interior. Intriga-nos o que esperar encontrar nelas. O cenário é absolutamente selvagem, num misto entre fantasia e terror.
Uma dessas gargantas ficou como uma aventura prometida. É isto que adoramos na Sardenha. Está constantemente a surpreender-nos com locais fantásticos, todos eles com o seu desafio de modo a serem explorados. Essa garganta é a Badde Pentumas, onde se faz um misto de trekking, ferrata e canyoning. Fartei-me de recolher informação sobre ela em sites italianos, mas ainda não era desta que lá íamos entrar. Ficaria para uma tão aguardada próxima vez.
Depois de subirmos praticamente sempre numa direção, viramos para a esquerda, rumo a este. Mudamos de direção porém a subida contínua. E para além disso, também esta se vai tornando mais inclinada obrigando a um esforço um pouco maior. Mas esse esforço é completamente esquecido pelo cenário que se vai redesenhando continuamente à nossa volta.
Aqui e acolá podíamos ver marcas nas rochas, pintadas de branco e vermelho, sinalizando de alguma forma que nos encontrávamos no caminho certo para algo. Como o terreno é praticamente coberto por rocha ou cascalho, a navegação pode tornar-se mais difícil para os menos experientes, daí a importância destes sinais ou mesmo das mariolas, um tipo de sinalização antiga utilizada pelos pastores, através do empilhamento de pedras umas em cima das outras.
O trilho vai se tornando cada vez mais sinuoso, com curvas e contracurvas que serpenteiam até ao topo do Monte Tiscali. Olhar para trás permite-nos aperceber da verdadeira inclinação da encosta por onde temos subido. E os enormes carvalhos, cravados profundamente nas rochas, continuavam a fascinar-nos com os seus braços elegantes repletos de folhagem.
Há uma árvore em particular que capta a nossa atenção, nossa e da máquina fotográfica claro. Um ginepro completamente despido, pondo a descoberto toda a sua extensão de troncos e ramos retorcidos. Sem dúvida que esta espécie é um dos símbolos do Supramonte bem como de toda esta região da Sardenha. Pode assumir a forma de arbusto ou de árvore e são as suas formas retorcidas que lhe conferem um charme tão extravagante. Pode ter inúmeros fins mas de certeza que um dos mais caricatos será o seu uso para fazer as cabanas dos pastores ou para fazer parte de passagens de caminhos perigosos. Uma espécie intrinsecamente ligada à história do povo Sardo.
"...Um ginepro completamente despido, pondo a descoberto toda a sua extensão de troncos e ramos retorcidos."
"... Uma ranhura que serpenteia rumo ao céu e atravessa a montanha de um lado para outro, um que esconde o verdadeiro legado de uma civilização antiga."
Não sei ao certo o que nos fez olhar para o lado, mas mal os nossos olhos se depararam com aquele bocado de rocha, percebemos que tínhamos encontrado a impressionante entrada que nos ia ligar ao território que pertencera àquela civilização antiga. Ficámos completamente abismados com a ousadia daquele povo. Parecia-nos completamente surreal que alguém alguma vez tivesse passado por aquele portal para criar ali a sua casa.
Agora percebíamos o porquê de não termos dado com a entrada na última vez que ali estivemos. Completamente à descoberta e praticamente desprovidos de qualquer tipo de informação, tentámos encontrar o Villagio Tiscali e acabámos a passar ali ao lado, a metros da entrada, sem a vermos. Confiantes que estaria no topo do planalto, seguimos o trilho até lá cima. A vista era absolutamente incrível mas nem rasto da civilização. Ainda deambulámos pela memória de alguns trilhos mas longe de imaginar onde estaria o que queríamos mesmo encontrar. Com o Sol a baixar no horizonte e sem outra solução tivemos de descer o trilho de volta ao carro.
Aprendemos a lição e voltámos ainda com mais ganas de encontrar a tão aclamada vila de Tiscali. Adorava a ideia do desafio. Na Sardenha nada é dado, é preciso conquistá-la. A aventura passa também pela busca. Não costumam haver marcações óbvias, apenas sinalizações de alguns trilhos, o que torna a ilha num paraíso para pessoas que gostam de aventuras mais genuínas e desafiantes.
E a entrada? Pois bem… imaginem uma parede de rocha… à primeira vista uma parede como todas as outras. Mas olhem com atenção… há algo de mágico nela. Uma estreita ranhura divide essa parede de rocha ao meio. Uma ranhura que serpenteia rumo ao céu e atravessa a montanha de um lado para outro, um que esconde o verdadeiro legado de uma civilização antiga. E uma escadaria de pedra, embeleza o quadro perfeito, que chega até nós e nos seduz a entrar.
Subimos os degraus de pedra até à entrada, olhámos uma última vez para trás, como se estivéssemos prestes a desaparecer do mundo onde temos vivido até aqui. Como uma espécie de fantasia de Jumanji. Quem não gostava de sair desta realidade e viver uma outra só por uns instantes. Deixar de ter certas coisas como dogmas e passar a viver num mundo de pura fantasia.
A minha mente não parava de fabricar sonhos e fantasias. Este lugar tratava-se disso mesmo. E não obstante, ali estava eu entre um mundo e outro. O calor sufocante tinha ficado para trás e eu agora estava no limbo, dentro da escuridão da tal ranhura. O espaço era o suficiente para passar uma pessoa e uma pessoa apenas. As paredes frias nunca viram o Sol e eu tocava-as à medida que passava. Suavemente, deixava a palma da mão deslizar pela rocha de contornos suaves, só para me sentir pertencer um pouco mais àquele lugar fascinante.
Chegámos ao outro lado e a minha alma vibrava de emoção. Estava encantada com tudo aquilo. E o silêncio tornava tudo mais intenso. Quebrado apenas pelas nossas interjeições de surpresa e alegria.
Estávamos numa espécie de varanda, a escassas dezenas de metros da vila de Tiscali. Uma beleza magnífica! O vale corria ao nosso lado tal como o extenso planalto de onde se erguiam cumes mais altos. Quase desprovidos de vegetação, brilhavam incessantemente com a sua rocha calcária exposta ao Sol. O varandim em si era uma espécie de oásis embebido num corredor de rocha. Uma simbiose brilhante entre rocha, arbustos e árvores. As paredes de calcário do lado direito demonstram as mais bonitas formas curvilíneas e os magníficos ginepros contorcem-se depois de escaparem da rocha.
Um quadro que jamais esquecerei.
"... E não obstante, ali estava eu entre um mundo e outro. O calor sufocante tinha ficado para trás e eu agora estava no limbo, dentro da escuridão da tal ranhura."
" ... Deixámo-nos cair sobre o solo rochoso, encostados um no outro, e a observar cada bocadinho da paisagem. Perguntámo-nos qual seria a razão para terem ido viver naquele local tão remoto. O que valeria tanto a pena para se deslocarem ao longo de terreno tão inóspito."
De repente o Valle di Lanaitto abre-se mesmo à nossa frente com um céu escuro que ameaça uma possível tempestade. A parede de rocha tornou-se cada vez mais baixa e possível de transpor. Queríamos subir e ver o que nos esperava do seu topo. Com ajuda um do outro escalámos a rocha, demos dois ou três passos em frente e, de repente, surge algo que jamais poderíamos ter imaginado… o pequeno mundo da civilização nurágica!
Não existe nenhuma fotografia que possa fazer jus àquilo que esteva ali mesmo à nossa frente.
Uma enorme dolina de abatimento esconde aquilo que esteve perdido durante tantos anos. O lugar perfeito para criar o lar de uma civilização antiga.
Uma imagem absolutamente fascinante. Montanhas, vales, desfiladeiros e um planalto a perder de vista. Uma paisagem remota e selvagem. No seu centro, este enorme buraco de paredes íngremes e assustadoramente intransponíveis. Mesmo de um ponto mais alto, como o nosso, era impossível desvendar o que se encontrava no seu interior, escondido pela canópia das árvores que foram crescendo livremente ao longo dos últimos séculos.
Deixámo-nos cair sobre o solo rochoso, encostados um no outro, e a observar cada bocadinho da paisagem. Perguntámo-nos qual seria a razão para terem ido viver naquele local tão remoto. O que valeria tanto a pena para se deslocarem ao longo de terreno tão inóspito. Sabíamos que as respostas às nossas perguntas estariam no interior daquela gruta mas não conseguíamos deixar de ficar fascinados por aquele lugar idílico.
Circundámos a dolina pelo topo das suas paredes. Enormes rochedos apareciam no meio do caos de árvores, evidencias do abatimento do teto da gruta. Algures, num passado distante, o espaço oco dentro da terra revelou-se depois do teto colapsar, deixando os destroços espalhados no interior da gruta. Temos vários exemplos de dolinas em Portugal mas este tinha algo de especial. Para além da sua grandiosidade, tinha sido abrigo dos nossos antepassados.
À medida que descíamos para pontos mais baixos, conseguíamos ver as enormes paredes do outro lado da gruta. Coloridas, com listas intercaladas entre um tom cinzento azulado e um tom laranja, e repletas de estalactites e escorrências.
A dado momento conseguimos ver finalmente aquilo que indicava a presença da civilização, as ruínas daquilo que terá sido uma antiga parede de pedra, encostadas a um dos cantos da gruta.
Pelo meio dos arbustos verdejantes, voltámos para o trilho de onde tínhamos escapado e descemos até à base da dolina, entrando nesta, no ponto onde as suas paredes são menos inclinadas e permitem uma descida mais fácil até ao seu interior.
"... Algures, num passado distante, o espaço oco dentro da terra revelou-se depois do teto colapsar, deixando os destroços espalhados no interior da gruta."
"... O lugar que esta civilização escolheu para seu lar é uma epopeia da natureza."
Esta vila fantasma deu origem a várias teorias acerca da sua história. Apesar de ter sido descoberta em 1910 e terem havido escavações em 1999, o Villagio Nuragico de Tiscali ainda tem muitas respostas por dar. Talvez estas possam ser dadas em futuras escavações.
É um lugar de grande importância histórica e arqueológica, intrinsecamente conectado com o estudo do estabelecimento humano durante o período Nurágico e os séculos seguintes até à chegada dos Romanos à Sardenha. Os fragmentos arqueológicos encontrados são classificados como pertencentes ao período entre o meio da época do bronze (XV-XII a.c.) e a idade do ferro (IX-VII a.c.), existindo também material datado do período romano.
O lugar que esta civilização escolheu para seu lar é uma epopeia da natureza.
Um anfiteatro natural com uma extensão capaz de albergar uma vila inteira, guardado por enormes paredes de rocha que se erguem imponentes a uma altura de várias dezenas de metros. Acima de nós, parecem inclinar-se numa espécie de cúpula, protegendo da chuva as habitações que se encontrassem mais perto da sua base e deixando no meio uma clareira que convida o Sol a espraiar os seus raios brilhantes, e onde agora se encontra um oásis de vegetação.
Para completar um quadro perfeito, uma enorme janela com a forma de triângulo invertido, abre-se na parede virada a norte, por onde podemos ver parte da encosta do outro lado do vale, e por onde entram pássaros e fragmentos de luz. A janela perfeita para uma casa feita de natureza.
Não conseguia conter o meu enorme entusiasmo, nem por um único minuto. Sentia-me como a Lara Croft a viver uma aventura dentro de um túmulo recôndito num qualquer canto do mundo. Aventureira e destemida, em busca dos mais fascinantes vestígios de civilizações passadas.
Imaginava como devia ter sido encontrar pela primeira vez aquele lugar. Ou melhor, como teria sido viver ali numa altura em que a ilha não passava de um templo completamente selvagem e natural, sem estradas, casas ou qualquer espécie de infraestrutura. Apenas mar, rio, pedras e rochas, árvores, arbustos e flores. Um paraíso onde tudo coexistia livre do homem moderno.
Deve ter sido maravilhoso. E como eu adoro perder-me nessas imagens inventadas pelo meu cérebro. Terão algum tipo de realismo? Não sei, mas gosto de imaginar as mulheres em volta da fogueira a cozinhar, os homens fora das muralhas de rocha a caçar e as crianças a brincar, correndo de um lado para outro naquela redoma de pedra.
A imaginação é algo incrível. Pode ser tão real que consigo ver essas pessoas por breves instantes. Quase lhes consigo tocar. Sempre fui assim, sempre gostei de me perder em delírios que eu própria transformo na minha realidade. Desde criança até este dia. Consigo viver uma fantasia sem sair do mesmo lugar. É fascinante esta nossa capacidade de sonhar acordados.
" ... A imaginação é algo incrível. Pode ser tão real que consigo ver essas pessoas por breves instantes. Quase lhes consigo tocar."
"... Então também nós tentávamos recriar a nossa ocupação nessa verdade inventada. E porque não viver ali? Viver como essa civilização viveu, obstante do que se passava fora das suas muralhas de rocha."
O chão da dolina está repleto de pedras. Grandes e pequenas, num caos organizado. Terão feito parte das paredes das inúmeras casinhas que ali coexistiam. Mais perto das paredes da gruta, podemos ver parte dessas paredes ainda de pé. Algumas habitações teriam utilizado a própria gruta como parede natural. O povoamento incluiu centenas de residências redondas, divisões de arrumação e recintos para gado doméstico. As paredes, de espessura modesta, eram feitas a partir do calcário da própria gruta, ligadas por uma argamassa constituída por barro vermelho e cascalho.
O sítio de Tiscali é único pela sua posição e estrutura, sendo considerado um lugar histórico e arqueológico de grande relevância. A escolha desta dolina para o assentamento desta civilização terá residido no fato de providenciar uma proteção natural contra os elementos como o sol e chuva. Para além de permitir um sistema de recolha de água e conferir proteção aos invasores na época romana.
Eu e o Jorge olhávamos em redor em procura do melhor local para a nossa casinha. Como se estivéssemos lá no momento em que decidiram viver permanentemente ali. Então também nós tentávamos recriar a nossa ocupação nessa verdade inventada. E porque não viver ali? Longe do rodopio que é o mundo que temos criado nos últimos anos. Viver simplesmente. Sem regras e guiões a seguir. Seguir com o fluxo da natureza e com o ritmo dos animais. Preocuparmo-nos apenas com as necessidades básicas e deixar o resto que não importa para trás. Viver como essa civilização viveu, obstante do que se passava fora das suas muralhas de rocha.
villagio di tiscali
Dorgali, Sardegnatambém em Sardenha
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